quinta-feira, março 23, 2006

Benção Cabocla - By Pedro Paulo Buchalle

Benção Cabocla
By Pedro Paulo Buchalle Silva


Nascerás, e do nascer ao poente da vida estarás condenado a ser feliz as margens de um rio que será azul pela manhã, cor de fogo ao entardecer e prateado nas noites de luar.
Tua morada será a exuberância da floresta e te alimentarás com o que produzires com o suor do teu rosto.
A infelicidade somente será possível se travares desigual luta contigo mesmo por não aceitares esta dita felicidade a que estás condenado.

Viverás plenamente, e nada adiantará manteres fechada à janela pela manhã, ou que nuvens negras encubram os céus.
O sol nascerá e irá se por, assim mesmo, independente da tua vontade e te invadirá pelas frestas do tapiri.
E por mais que insistas em não levantar a maromba porque não há chuvas, as águas de março vão subir e te molharão os pés.
E mesmo que varras o chão as folhas de setembro cairão das árvores, uma a uma, até outro broto nascer.

Gozarás do anoitecer de agosto a lua que rompe cheia, clara e nua nos céus como igual em nenhum outro mês nascerá.
O pitiú e o rebujo do cardume de aracús te fará arremessar a tarrafa certeira enquanto sobem à praia do rio de prata os tracajás.
Dormirás ao relento nestas noites de piracaias inesquecíveis e ao luar acordarás com o vento quente da madrugada ao som dos bem-te-vis.

Amarás, com tamanho desejo e ternura que tuas noites terão sempre o aconchego de peles morenas e cabelos negros, sedosos, cheirosos de paticholin.
E por este mesmo amor tanto te darás e com tamanho ardor nele te consumirás, que com ele estarás na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, até que um novo encontro se faça na eternidade.

Multiplicar-te-ás no amor que te chama, pois eterno, e nele conceberás tua prole sem temeres o desejo ardente que o corpo na rede ao lado reclama.
Como os pássaros serão os teus, livres para remar ou cavalgar na imensidão das várzeas e terras-firmes e aprenderão contigo que a perpetuação da espécie é mais que reprodução de genes, é virtude que se passa adiante na generosidade, fraternidade e recíproca com o outro na multiplicação do moquém embebido de malagueta e tucupi.

Morrerás no ocaso dos anos e sob teus cabelos brancos restarão eternas lembranças.
Destas, levarás contigo a certeza da generosidade da terra, do rio e da floresta que te alimentou, te alegrou e te deu teto durante anos a fio.
Nesta mesma terra serás sepultado te tornando alimento para novas árvores que nascerão e que produzirão frutos que servirão aos pássaros dos céus e aos animais da floresta.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial