terça-feira, abril 25, 2006

Carta a uma amiga apaixonada_1

Caríssima

Fiquei, como você, matutando, olhando de soslaio suas palavras. Li, reli e pensei: não estaria eu, daqui, tão distante, remoendo dores a quem precisa de afago na alma? Não estaria meu ceticismo construindo muros ao invés de construir pontes? Não estaria eu regando a outra semente, que não a do bem, com a frieza com que tratei suas dores?

Não. Não fiz isto.

Na realidade te falei da minha experiência e da forma inteligente de como conduzi minha felicidade, subjetiva por natureza, na medida em que cada um de nós determina os padrões de sua própria, absoluta e individualizada forma de ser feliz. Ocorre que mesmo o mais subjetivo dos conceitos que tenhamos acerca deste ou daquele tema, principalmente quando se trata de sentimentos, algo de básico, peculiar e típico existe e deve ser preservado: a reciprocidade.

Sou um fraco, minha cara, na medida em que fugiria de qualquer luta, que por dever devesse ser conjunta, sem que existisse absoluta dualidade de sentimentos; se a reciprocidade verdadeira entre estes guerreiros não fosse suficientemente verdadeira que não tornasse estas pelejas do dia a dia uma via de mão dupla. Sou possessivo. Não divido o outro. Até permito, naquilo que a permissibilidade humana me enseje, sem fugir às regras da ética, que parte do todo seja divisível, mas sem que a parte restante perca, da principal, a essência. Se fosse algo geneticamente explicável, quiçá fosse, nestas divisões a que se permitem os humanos, quaisquer das partes divisíveis manteriam o padrão genético: a essência seria preservada.

Mas, feliz ou infelizmente, para estes e aqueles, nestas tais divisões, em que parte sai à caça, e tem bom proveito, isto no sentido da mera captura, a outra parte, sofrida, limita-se a guardar as crias, enquanto o caçador, saciado, dorme à sono solto, sob a vigília de suas lágrimas.

Isto é imoral.

Gostaria muito, amiga, de conhecer deste sentimento de que tanto se fala, em verso e prosa. Não tenha pena de mim, lhe peço. Neste mundão de meu Deus, a Arca se predispôs, por definição Dele, a abrigar todas as espécies, entre estas as de minha característica.

Sou moldado pela razão, nela respiro e quero expirar com ela.

Nesta equação simétrica, deve haver sempre um resultado inteiro e indivisível: a recíproca. Ou está errada a solução. Aí refazem-se as contas, trocam-se os números, mas nunca o resultado pode ser alterado, por mera conveniência de uma das partes. Na recíproca verdadeira, verdadeiro deve ser o conceito de que as partes, mesmo antagônicas, cooperem entre si. Não fosse isso, como sobreviver a concorrência que seria sanguinária, não houvessem estas partes, mesmos opostas, que manter um mínimo de cooperação? Ora, se entre oponentes é necessário, que dizer dos que se associam no afeto, na coexistência, na coabitação e no coito?

Somos meros contratantes até nos relacionamentos íntimos, que apenas por desatenção alguns pares comentem o equívoco do falso orgasmo, fazendo nascer daí o grande complicador de todos os acordos: a passionalidade que afasta a razão, objeto principal da mais justa aplicação de direitos e deveres recíprocos a que estão obrigados os que contratam entre si.

Isto parece ser extremamente tecnicista, mas me agrada pelo resultado obtido historicamente, por si só bem mais atraente que o outro, via de regra rescindido pela tragédia. Eu te diria, minha querida, que mesmo o orgasmo querido e desejado, seja pelo prazer em si, meramente irracional e portanto instintivo, ao cio a que todos estamos sujeitos; seja por este mesmo desejo que pode ser complemento ao bem estar com o parceiro com quem o dividimos, deve ser objeto da razão.

Podes achar que um dia eu venha te desdizer tudo o que hoje afirmo. Não seria razoável, ao meu ver, que a idade, que tem o condão de amadurecer pelo decurso do tempo, pudesse diminuir o meu aprimorado sentido de razão, para imprimir em mim esse diminuto sentimento que ao longo do tempo tem causado tanta dor, tantas perdas irreparáveis; objeto de tantas tragédias, das contadas e das omitidas, onde por certo são as últimas maioria.

Permito-me navegar no mar calmo da razão, mesmo que dessa vida não conheça das benesses propagadas da paixão, há tanta contada em versos e prosa. Prefiro o cio despretensioso que nos atrai a todos da mesma espécie, que o dia a dia das ardentes desilusões.

Um abraço.

PP

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